21 de janeiro de 2012

Do Gênesis ao Apocalipse: O Paraíso Perdido


E hoje estreamos nossa nova coluna aqui no Coruja - Do Gênesis ao Apocalipse! Para quem perdeu a explicação e não sabe o que está fazendo aqui, a idéia é, ao longo de 2012, explorar um pouco da história da civilização através de livros – do começo, até o final do mundo, previsto para o final do ano.

Quer o mundo termine em dezembro, quer não, mergulhar na história do homem fazendo uma viagem no tempo literária me parece uma grande idéia. Talvez eu invente algo parecido ano que vem (se o mundo não tiver acabado).

Bem, para começar nosso projeto, me parece bastante óbvio que devemos começar do começo, não? Ou talvez até antes do começo, antes mesmo da criação. Assim é que não consigo pensar em nenhum outro melhor que...


Adeus, felizes campos, onde mora
Nunca interrupta paz, júbilo eterno!
Salve, perene horror! Inferno, salve!
Recebe o novo rei cujo intelecto
Mudar não podem tempos, nem lugares;
Nesse intelecto seu, todo ele existe;
Nesse intelecto seu, ele até pode
Do Inferno Céu fazer, do Céu Inferno.

Que importa onde eu esteja, se eu o mesmo
Sempre serei - e quanto posso, tudo?...
Tudo... menos o que é esse que os raios
Mais poderoso do que nós fizeram!
Nós ao menos aqui seremos livres,
Deus o Inferno não fez para invejá-lo;
Não quererá daqui lançar-nos para fora:
Poderemos aqui reinar seguros.
Reinar é o alvo da ambição mais nobre.
Inda que seja no profundo Inferno:
Reinar no Inferno preferir nos cumpre
À vileza de ser no Céu escravos.
A primeira vez que li O Paraíso Perdido, lembro-me de ter avançado quase aos trambolhões, nada acostumada ao estilo épico de Milton. Era novinha – devia ter uns dezesseis para dezessete anos – mas ainda guardo a lembrança dessa primeira leitura, de “alumbração”, de fascínio.

Mais tarde, ao conhecer um pouco da biografia do autor, ficou a sensação ainda mais forte de espanto e admiração – Milton não escreveu propriamente o poema, mas o ditou, uma vez que estava cego à altura em que compôs sua obra-prima. Burgess, o autor de Laranja Mecânica- e que era também professor de literatura – resume admiravelmente as impressões que temos ao somar esse dado ao todo:
Em 1632, ele perdera a visão, e de agora em diante seu mundo se torna um mundo escuro de imagens relembradas, de sons sem cor, um mundo pessoal altamente autocentrado, o mundo do Paraíso Perdido. Esta grande epopéia registra o maior acontecimento conhecido dos povos hebraico-cristãos: a Queda de Satã e a conseqüente Queda do Homem. O mundo sem visão de Milton o torna capaz de pintar a vastidão obscura do inferno de modo mais eloqüente do que o poeta italiano Dante com sua nitidez de visão.
E já que estamos falando de Dante, Milton e visões do Inferno, gostaria de observar que entre estes dois monstros literários, só mesmo alguém como Gustave Doré para ilustrá-los. Minha edição de Milton não tem as ilustrações originais, mas não é difícil encontra-las na internet – e acho que é difícil superar o imaginário que Doré criou em cima desses dois épicos.


Voltando à história... Lúcifer caído, agora Satã, lançado ao Inferno após fazer guerra nos céus, decide se vingar fazendo com que o homem, a mais perfeita criação divina, caia como ele. E é exatamente isso que ele faz – mesmo, por momentos, contra sua própria vontade, incapaz de escapar à admiração daquela nova criatura que Deus criara a sua imagem e semelhança.

E essa segunda queda é algo ainda mais doloroso e absurdo que a primeira, uma vez que Adão e Eva não foram pegos desprevenidos e inocentes. No momento em que Satã se infiltrou no Éden, Deus lhes deu conhecimento de quem era ele e o que planejava.

Agora, se formos pensar em termos simplistas, o tema da Queda é na verdade uma grande piada meio doentia de Deus. Sendo onipotente, onisciente e onipresente, Ele sabia o resultado que viria de colocar a Árvore do Conhecimento no meio de Éden – sabia que o homem não conseguiria resistir.

O que Milton nos diz, porém, é que a despeito d’Ele saber o que aconteceria, era necessário permitir ao Homem que tivesse o livre-arbítrio, que ele pudesse escolher. Não pode haver virtude e pecado sem que haja um Fruto Proibido – o teste é o que dá significado à virtude e sem esta, o homem não pode viver sua plenitude como imagem e semelhança do ser divino.

Pode parecer um pouco complicado de acompanhar, mas faz sentido. O maior dom que Deus teria dado ao Homem seria o poder de fazer suas escolhas por si – e para que isso pudesse ser utilizado, era necessário que existissem escolhas. Pensando dessa forma, a própria queda de Lúcifer poderia ser vista como parte do Plano Divino – é necessário que exista o caminho do Céu e o caminho do Inferno para que o homem possa tomar uma decisão.

Se tudo isso já não fosse suficientemente polêmico, Milton criou um dos vilões – se é que podemos chamá-lo assim – mais interessantes, mais surpreendentemente nobres de toda a literatura. Lúcifer conserva na queda a majestade que o fazia ser o primeiro entre os anjos e por boa parte de O Paraíso Perdido não podemos deixar de nos sentir tão seduzidos por ele quanto Eva foi.

Ele é um gigante que ainda conserva suas asas, seu porte, seu carisma e sua liderança. Passo a passo, contudo, ele se despe de suas vestes divinas até rastejar como serpente e, da nobreza que ainda nos ofusca a princípio, resta apenas um discurso melífluo e o sentimento de mesquinhez, inveja e orgulho que, ao final das contas, foi responsável por sua queda.

Eis porque concluiu o poeta William Blake que “Milton era do partido do diabo sem sabê-lo.”. Por boa parte de O Paraíso Perdido, é o magnetismo de Satã – muito mais que a inocência de Adão e Eva – que nos prende e fascina.

Creio que nenhum outro elogio possa ser maior que esse ao gênio de John Milton.


A Coruja


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2 comentários:

  1. Também acho que não pode existir melhor "ilustrador" que Doré.

    Nunca tentei me aventurar pelo Paraíso Perdido, muito medo de épicos, aqui. Quem sabe um dia, numa época menos corrida que esta, né?

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  2. Adorei seu texto. Paraíso Perdido li por causa do meu tcc sobre Tolkien e adorei. É um texto complicado, mas quando se pega o embalo...

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